A comparação de dados provenientes de diferentes Censos não é automática. Nem todas as perguntas estão presentes ao longo de todo o escopo de tempo. Além disso, muitas das perguntas “sempre presentes” tiveram enunciados, alternativas e escopo de aplicação alterado. Em alguns casos, bastam algumas transformações ou harmonizações de variáveis. Noutros, a comparabilidade é apenas aproximada. E, em raras ocasiões, não é viável. Seria necessário um trabalho específico para da conta de todas as possibilidades e formas de garantir comparabilidade – o que está fora dos propósitos deste verbete.
Já existem estudos específicos, no entanto, dirigidos para cada um dos temas cobertos pelos Censos Demográficos, propondo sugestões de harmonização. Na seção sobre os Temas investigados nos Censos, abordamos alguns desses estudos existentes.
Neste verbete, fazemos algumas considerações mais gerais sobre as dificuldades envolvidas na comparação dos Censos ao longo do tempo. Apontamos algumas diretrizes e informações que devem ser levadas em consideração.
Variações nos questionários entre os censos
A primeira delas refere-se à estabilidade das perguntas, alternativas e seus significados. Antes de produzir análises, é sempre importante conhecer os questionários, dicionários de variáveis e documentação auxiliar. Deve-se observar a quais grupos ou subgrupos da amostra as questões foram dirigidas (questões sobre educação geralmente são feitas apenas a pessoas com 5 anos de idade ou mais; questões sobre trabalho e rendimento, à pessoas com 10 anos ou mais; sobre fecundidade, a mulheres com 15 anos ou mais; e assim por diante). Uma mesma questão, porém em Censos diferentes, pode ter diferentes escopos de aplicação. O segundo ponto a observar é sobre a estabilidade da forma de enunciação: estímulos diferentes aos entrevistados produzem diferentes respostas. Por fim, quanto às alternativas de resposta, para além da semelhança nominal que possa existir entre rótulos e descrições, é preciso verificar, nos manuais e documentações oficiais, se não há outros significados subsumidos e não explicitados – o que, obviamente, causa alteração expressiva das frequências de resposta.
Variações nas unidades geográficas e políticas do Brasil
A segunda diretriz diz respeito às comparações territoriais. O número de municípios variou muito ao longo do tempo, passando de 3951 em 1970 para 5565 em 2010. Os novos municípios são fruto não apenas de divisões de municípios maiores, como também de fusões e redelineamentos que envolveram diversas localidades. Deste modo, as unidades políticas “constantes no tempo” não são exatamente constantes. Parcelas mais ricas podem ter se emancipado ou parcelas mais pobres podem ter sido segregadas – o que certamente varia imensamente em cada um dos casos. Algumas estratégias envolvem a demarcação de áreas minimamente comparáveis no tempo (REIS et al, 2011; RESENDE, CARVALHO, SAKOWSKI, 2013) – ou seja, aqueles municípios cujas fronteiras permaneceram constantes ao longo do tempo (que eram em número de 3657, entre 1970 e 2000). Mas outros caminhos são possíveis, desde que se leve em conta a heterogeneidade implicada nas redefinições territoriais. O número de Unidades da Federação também variou: o estado da Guanabara (antigo Distrito Federal) foi incorporado ao Rio de Janeiro; Mato Grosso e Mato Grosso do Sul se separaram; Tocantins se emancipou de Goiás; os territórios federais foram abolidos: Fernando de Noronha foi anexado à Pernambuco; Rondônia, Roraima e Amapá se tornaram estados.
Rendimentos ao longo do tempo: mudanças de moeda e inflação
O terceiro ponto diz respeito às moedas e seus valores. Durante o período entre 1960 e 2010, o Brasil implementou diversas políticas monetárias que alteraram a unidade de medida e de valor das moedas – não raro, em meio a períodos de intensa inflação e crise. É preciso fazer as conversões monetárias e deflacionar os valores. Sugerimos a adoção dos deflatores de Corseuil e Fogel (2002), bastante utilizados e testados. É possível encontrar dados atualizados periodicamente para esses índices no site do IpeaData (http://www.ipeadata.gov.br/).
Períodos de referência e captação das informações censitárias
O quarto ponto diz respeito aos períodos de captação da informação de determinadas variáveis. Um exemplo ilustrativo é o caso da informação ocupacional. Em 1960 e 1970, pergunta-se sobre a ocupação habitual do indivíduo. Ou seja, é possível que um indivíduo declare ser “cozinheiro”, por exemplo, mesmo que não estiver desenvolvendo, naquele momento, as funções a essa atividade. Ele “é” cozinheiro, mesmo que não “esteja” trabalhando nesse ramo. O Censo de 1980 indaga sobre a ocupação habitual nos últimos 12 meses (que tem certo paralelo com os quesitos dos dois censos anteriores) e também a ocupação desempenhada na semana da aplicação do questionário. O censo de 1991 apenas indaga sobre a ocupação nos últimos 12 meses – e os censos de 2000 e 2010 apenas sobre a ocupação na semana de referência. Essas alterações têm implicações importantíssimas sobre o formato da estrutura ocupacional identificada em cada período, bem como sobre taxas de atividade, ocupação e desemprego. É sempre necessário observar os períodos de referência e captação das questões.
Sistemas de classificação e alternativas das variáveis
O quinto ponto diz respeito aos sistemas de classificação empregados em determinadas variáveis. Alguns casos são particularmente importantes: ocupação, setores de atividade econômica, níveis de ensino, cursos realizados no sistema formal de educação e religião.
Ocupações e setores de atividade econômica
Os sistemas ocupacionais e setoriais se alteraram profundamente, em parte como resultado do aprimoramento das medidas, em parte como consequência da própria diversificação do mercado de trabalho, que contém crescentemente funções, posições e empresas mais diversificadas. Algumas ocupações se tornaram mais especializadas, requerendo agora ensino superior, como é o caso da Fisioterapia (anteriormente uma profissão de nível técnico) – ou seja, mudam de caráter, o que tem consequência para a definição do perfil dos ocupantes, da o patamar esperado de rendimentos e sua dispersão, para as possibilidades de organização em torno de associações, sindicatos etc. Há também profissões “novas”, que decorrem da especialização (como Gerentes de RH) ou do desenvolvimento tecnológico (técnicos e profissionais de TI). Inversamente, houve ocupações que praticamente se extinguiram, como é o caso dos datilógrafos. Todas essas alterações fizeram com que não existisse um pareamento unívoco entre os sistemas ocupacionais e setoriais adotados em cada um dos censos (apesar da grande semelhança entre as classificações de 1960 a 1991).Qualquer comparação longitudinal apenas se torna válida se fizer uso de categorias mais agregadas e construídas de forma customizada pelo pesquisador – mas que são, no entanto, também mais imprecisas.
Escolarização: níveis e séries que se alteram com reformas educacionais
Com respeito aos níveis educacionais, destacamos que houve durante o período considerado, diversas reformas federais importantes do sistema educacional (destacando-se as de 1961, 1968, 1971, 1982 e 1996). Algumas delas alteraram a organização e o conteúdo do currículo básico e também a própria duração do período de escolarização formal obrigatória. Em 1960, por exemplo, o 1º Grau (hoje denominado Ensino Fundamental) era constituído de apenas 6 anos, nos censos de 1970 a 2000 o nível equivalente de ensino se compunha de 8 anos e, em 2010, de 9 anos. Isto implica que o escopo de variação das possibilidades de realização educacional não permaneceu constante, logo, médias de anos de estudo não são, por exemplo, comparáveis. Um indivíduo com 6 anos de estudo em 1960 é equivalente a um indivíduo com 9 anos em 2010.
Os Censos também captam o curso superior realizado pelo indivíduo. Porém as classificações das áreas e a quantidade de cursos arrolados na listagem variam bastante e são poucos aqueles que são estritamente comparáveis ao longo dos anos.
Religião
O mesmo, com respeito à variável sobre religião. A despeito da recente pluralização e diversificação do campo religioso brasileiro – que justifica o aumento de categorias e alternativas – é possível dizer que o reduzido número de opções nos censos de 1960 e 1970 não faz jus completamente à heterogeneidade já existente à época.
Em todos esses casos é preciso definir categorias mais agregadas que se tornam minimamente comparáveis
Referências:
CORSEUIL, Carlos Henrique; FOGUEL, Miguel N. “Uma sugestão de deflatores para rendas obtidas a partir de algumas pesquisas domiciliares do IBGE”. Rio de Janeiro: Ipea, 2002. (Texto para Discussão, n. 897).
REIS, Eustáquio; PIMENTEL, Márcia; ALVARENGA, Ana Isabel; SANTOS, Maria. Áreas mínimas comparáveis para os períodos intercensitários de 1872 a 2000. Anais do I Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica, Paraty, 2011. Disponível em: https://www.ufmg.br/rededemuseus/crch/simposio/REIS_EUSTAQUIO_JOSE_R_ET_AL.pdf
RESENDE, G.; CARVALHO, A.; SAKOWSKI, P. “Avaliando o crescimento econômico no Brasil em múltiplas escalas espaciais com a utilização de modelos de painel espacial (1970-2000)”. Brasília: Ipea, 2013 (Texto para Discussão, 1830).